Não tinha na família nenhuma ligação ao sector e, segundo as suas próprias palavras, “não sabia fazer nada na cozinha”, mas a verdade é que quando estava no segundo ano de Gestão Hoteleira, em Londres, numa aula de culinária, deu-lhe “um clique” e decidiu não só deixar o curso, mas entrar para a prestigiada escola Cordon Bleu, também na capital inglesa. Foi este o início da carreira de Miguel Rocha Vieira, nascido há 44 anos em Lisboa, que passou também por França, Espanha e, sobretudo, Hungria, e que agora está de regresso a Portugal para abrir um restaurante mesmo sobre o rio, na Doca da Marinha, junto ao Terreiro do Paço, cuja inauguração deve ocorrer no início de Novembro.
O percurso de Miguel Rocha Vieira está pontuado por experiências de trabalho em diversos restaurantes de topo, começando, logo após terminar o curso, pelo 1 Lombard Street, em Londres, com uma estrela Michelin. “Na altura, nos finais dos anos 90, já ouvíamos falar dos espanhóis, principalmente do Adrià, que fazia uma coisas loucas como gelatina quente, mas a cozinha francesa ainda era predominante”, lembra. Assim, após ano e meio, rumou a França, primeiro para um restaurante no Jura, depois para a célebre Maison Pic, da chefe Anne-Sophie Pic, então com duas estrelas Michelin (ganharia a terceira no ano seguinte), onde ficou mais de um ano.
O “boom” da cozinha de vanguarda espanhola atraía Miguel Rocha Vieira e o passo seguinte seria nos arredores de Sevilha, na famosa Hacienda Benazuza, um restaurante com duas estrelas Michelin que tinha a cozinha de Ferran Adrià, reproduzindo vários dos pratos que o celebrizaram no El Bulli. Nos dois anos que lá esteve, começou como chefe de sector para alcançar o de subchefe. Veio então o desejo de uma nova etapa, com o objectivo de passar a chefiar uma cozinha, mas sem nenhum destino traçado. “Quis voltar para Portugal, mas não consegui arranjar emprego”, conta. Por isso, em 2008, quando surgiu o convite de ir abrir um restaurante em Budapeste, o Costes, achou que seria interessante ir conhecer o projecto e a cidade. Ficou por lá e dois anos depois ganharia a primeira estrela Michelin atribuída na Hungria.
A ligação ao Costes – agora terminada e que ainda lhe valeu, em 2015, uma outra estrela num segundo projecto, o Costes Downtown, apenas 10 meses depois de abrir – duraria 13 anos, embora, entre 2015 e 2018, Miguel Rocha Vieira tenha assumido a chefia da Fortaleza do Guincho (uma estrela Michelin), ocupando as suas folgas com viagens até Budapeste para acompanhar o restaurante. “Por mim, teria continuado na Fortaleza do Guincho, porém as coisas não correram como tinha previsto e decidi que só voltaria a Portugal num projecto que realmente valesse a pena”, afirma. E esse projecto, de qual ainda não se pode revelar o nome, parece ter sido encontrado em Lisboa. Além do restaurante principal, inclui três quiosques, dois dos quais já abertos – um terceiro para breve – cada um com a sua especialidade: mariscos, petiscos portugueses e pequenos-almoços/brunches. É este regressado e entusiasmado chefe o entrevistado deste Menu de Interrogação, que tem o patrocínio da cerveja Estrella Damm, no âmbito do seu apoio à gastronomia.

Recentemente, em entrevista à RTP, referiu que no novo restaurante que se prepara para abrir quer dar mais valor ao serviço de sala e aos seus profissionais. Sabendo a crise que vai nesta área e na debandada que houve na profissão, no pós-pandemia – por razões que o próprio apontou ao referir que “não cuidámos destas pessoas, “há um lado humano que faltava”, ou que “ganhavam ordenados miseráveis” – como pretende fazer essa valorização, dando melhores condições (horários, ordenado…) ou apenas maior relevância ao seu trabalho?
Acho que houve muita gente, até por todo o feedback que fui recebendo, que ficou com a ideia de que tudo se resolve com um aumento salarial. A mensagem que quis passar vai muito além disso, embora, e sem dúvida alguma, é um ponto importante e que deve ser revisto.
O que tentei dizer, e acho que até o fiz de uma forma bastante clara, foi que se hoje todos nos queixamos da falta de mão de obra, talvez seja altura de parar um pouco para pensar o que nos fez chegar até aqui, e que talvez, só talvez, será altura de assumirmos um mea culpa, tentando não voltar a repetir os mesmos erros.
Sei que pode soar um pouco a clichê, mas, da parte que nos toca queremos criar um local de trabalho saudável, onde todos se sintam valorizados, e que, em equipa, lado a lado, rememos na mesma direção. Queremos que as equipas vistam a camisola, tenham orgulho em fazer parte do projeto e que não se sintam apenas mais um, facilmente substituíveis. Existe realmente uma preocupação – honesta e verdadeira – no seu bem-estar. Desejamos que todos os nossos colaboradores venham trabalhar com um sorriso na cara pois essa felicidade e alegria é contagiante, tanto para os colegas como para quem nos visita.
Acho, cada vez mais, que o equilíbrio é muito importante na vida e, hoje em dia, tenho a perfeita noção de que para pedir também temos que dar. Muitas vezes um pequeno detalhe ou mesmo um pequeno gesto, feito genuinamente e sem esperar nada em retorno, faz toda a diferença.

Além dessa aposta, e de ser um restaurante que leva a sua assinatura, o que o vai distinguir dos demais?
Não quero ainda levantar muito o véu, pois acho que toda esta curiosidade que se está a levantar acaba for ser benéfico para todos, mas, posso-lhe desde já dizer que, todo este projeto é bastante mais que um restaurante, embora este acabe por ser o tal “ponta de lança” do qual já tive a oportunidade de falar algumas vezes. Digo-lhe também que, e como bem diz, seja um projeto que terá a minha assinatura e do qual, pelo menos ao início, as pessoas irão associar ao meu nome, não será de todo um restaurante de chef ou de assinatura se preferir.
Queremos que seja um restaurante de todos e para todos, onde eu, pessoalmente, quero passar para um segundo plano e deixar brilhar todos aqueles que me rodeiam. Um projeto onde me quero reinventar e onde quero voltar a pôr as “mãos na massa” pois, afinal de contas, foi isso que me levou a escolher esta profissão.
Para terminar, aproveito também para deixar claro que o grande desafio não é o de abrir um restaurante, mas sim o de dar vida e dinamizar uma “nova” área que está no centro de Lisboa, com uma localização ímpar, mas que muita gente – incluindo lisboetas – não sabiam que existia.
Este projeto passa não só pelo tal restaurante, mas também por três quiosques e toda a exploração de eventos. Queremos, em parceria com o Turismo e a Câmara de Lisboa, criar uma área de lazer da qual todos nos sintamos orgulhosos.
Quais os principais obstáculos que existem atualmente para quem quiser abrir um restaurante em Lisboa? E quais as principais vantagens?
Acho que abrir um restaurante não é fácil em lado algum e Lisboa não foge à regra. Se a isto lhe juntarmos os tempos e o mundo em que atualmente vivemos então o desafio torna-se ainda maior.
Não lhe posso falar no geral, mas, para além da escassez de mão de obra que é sobejamente conhecida, no nosso caso, os maiores obstáculos têm-se relacionado mais com a parte da construção propriamente dita onde a falta de alguns materiais e o aumento dos preços, muitas vezes de forma vertiginosa, têm dificultado um pouco as coisas.
Também, e apenas a título de curiosidade, gostaria de referir que, como é sabido, passei os últimos anos numa parte do mundo – a que muitas vezes e de uma forma redutora apelidamos de “Europa de Leste” – onde abri de raiz 2 restaurantes, com bastante sucesso por sinal, e posso-lhe dizer que nunca me deparei em momento algum com a quantidade de burocracias e entraves, muitas vezes sem algum nexo, como as que tenho vivido nestes últimos meses, aqui, no nosso país.
Em relação às vantagens de abrir um restaurante em Lisboa, e visto que ainda não abrimos ao público, consigo estar mais tempo e mais perto da família e dos amigos, não esquecendo obviamente, que deixei de lado os gorros, luvas e cachecóis.

Nestes últimos tempos tem sido muito crítico em relação ao Guia Michelin. Sabendo que quando chefe que já teve estrelas abre um novo restaurante passa a ficar na mira do guia, o que vai fazer se lhe derem uma estrela, devolve-a no dia seguinte?
Segundo os senhores que escrevem o guia, os chefs não podem devolver as estrelas pois estas são atribuídas a estabelecimentos e não – contrariamente ao que muita gente pensa – a chefs. Dizem também que o máximo que uma pessoa pode fazer a esse respeito é o de concordar com a decisão, ou, pelo contrário, discordar. A verdade é que de há uns anos para cá tenho feito parte desse segundo grupo, pois custa-me cada vez mais entender a sua lógica – se é que existe alguma – e a compreender certas decisões que tomam.
Com nunca fui virado a “lobismos” nem faço parte da peregrinação anual que se faz a Madrid, acho que, e felizmente, não estarei na mira de ninguém muito menos “de la Guia Michelin“.
O que realmente importa, e digo-o com a toda a sinceridade, é que tanto as nossas equipas como os nossos clientes – as verdadeiras estrelas – estejam bem e felizes.
Quais os produtos ou ingredientes fetiche que nunca podem faltar na sua cozinha?
Em casa não pode faltar um bom presunto ibérico, já nos restaurantes, e como temos tendência em seguir a sazonalidade, tentamos ter o que a Mãe Natureza tem de melhor para nos oferecer, em determinada altura do ano, e não ter certos produtos só porque sim. Dito isto, não prescindimos de um bom azeite ou de uma boa manteiga, um vinagre de qualidade, citrinos – que usamos em quase tudo – um bom chocolate ou uma boa vagem de baunilha.
Como avalia a cultura gastronómica em Portugal quando comparada com a de outros países que conhece?
Seremos talvez das culturas com mais diversidade gastronómica que conheço e acho que isso deve-se também a todo o nosso passado de Descobrimentos e descobertas.
Temos uma gastronomia cheia de tradições e produtos de grande qualidade, dos quais, em boa hora, nos orgulhamos. Há também uma geração de chefs que começou a entender, a aprofundar e a valorizar tudo isso. Nunca me deparei com ninguém que tenha vindo a Portugal e que não tenha feito questão de referir o quão bem se come no nosso país.
Neste aspecto, Portugal está muito bem e recomenda-se!
O facto de ter vivido e trabalhado bastantes anos no estrangeiro torna mais difícil o seu relacionamento com outros colegas de profissão? E que importância dá a essas relações?
Não! Não me parece de todo que o facto de ter vivido e feito carreira lá fora, durante muitos anos, torne o relacionamento com colegas de profissão mais fácil ou mais difícil, mais próximo ou mais distante. Acho também que não será pelo facto de não me verem muito por aí, de jaleca vestida em fotos de grupo nas redes sociais, a fazer parte de fins-de-semana gastronómicos de norte a sul do país, de jantares a 4, 6 ou 8 mãos, de conferências ou em festas de entregas de prémios, que seja sinónimo do contrário.
Sempre mantive uma relação cordial e de respeito mútuo com todos, onde obviamente alguns são amigos íntimos, outros conhecidos e outros isso mesmo, colegas de profissão.
Acho que é importante manter essas relações sim, mas, como tudo na vida, q.b.
Quais os chefes, portugueses ou estrangeiros, que mais o influenciaram?
No início da minha carreira era para França que todos olhávamos sendo Pierre Gagnaire o meu chef de eleição, não esquecendo nomes como Michel Bras ou Michel Troigros.
O primeiro livro de cozinha que comprei – a par da “Larousse Gastronomique” – o “The French Laundry Cookbook” de Thomas Keller, que passou também a ser uma referência.
Anne-Sophie Pic, os irmãos Adrià e Sergio Herman são pessoas por quem tenho uma grande admiração e com que tive o privilégio de trabalhar.

Considera que reage bem às críticas, negativas ou positivas, quer as que lhe podem fazer diretamente num restaurante onde trabalha quer as publicadas?
A idade, para além de cabelos brancos e alguma barriga também, trouxe-me mais serenidade no que respeita a este tema. Saber ouvir opiniões, com as quais podemos ou não concordar, é bastante importante e tenho claro que toda a gente tem o direito de dar a sua.
Acho que a partir do momento em que fazes – o que quer que seja – que te exiba perante um publico estás forçosamente exposto à critica e, em prol de uma sanidade mental, terás de aprender a lidar com isso.
Devemos saber filtrar e ignorar as que são fora do contexto e sem sentido, ser o suficientemente humildes para ouvir, aceitar e até mesmo corrigir as que nos pareçam ser feitas de uma forma legítima e honesta, e também, ter os pés bem assentes na terra e não nos deslumbrarmos com aquelas que nos colocam num altar. Afinal de contas, e citando um célebre chef canadiano, “You´re as good as your last dish“, ou seja, “és tão bom quanto o teu último prato”.
E a pergunta da praxe: qual seria a sua última refeição se soubesse que o mundo acabaria amanhã?
Sabendo que o mundo acabaria amanhã, a minha principal preocupação seria a de tentar juntar à mesa aqueles que me são queridos, deixando com toda a certeza a comida para um segundo plano. Dizendo isto, acho que seria algo simples, honesto, descontraído, divertido e muito provavelmente confecionado num grelhador, com tudo o que de bom o Atlântico tem para nos oferecer, sem esquecer um bom presunto Ibérico ou o decadente leite creme que a minha avó paterna fazia.